Em 30 de março de
1995, foi promulgada a Lei nº 9.019, a qual fez internalizar na legislação
brasileira o artigo 6º do Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt), ratificado
pelo Brasil, em abril de 1994.
A Lei, em sua
redação original, deixa evidente que a definição de dumping no comércio
internacional, a sua investigação e a aplicação dos direitos antidumping
obedecem, literalmente, aos procedimentos desse acordo.
Mediante um
processo administrativo, conduzido pelo Departamento de Defesa Comercial (Decom)
do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), é
investigada a prática de dumping por uma ou mais empresas no mercado
brasileiro, isto é, se elas estão exportando seus produtos por um valor inferior
ao praticado no seu próprio mercado doméstico.
Se, por fim, é
constatada a ocorrência de dumping, o Decom propõe a aplicação de direito
antidumping, de duas formas: específico ou um valor sobre a mercadoria
(ad valorem). A sua proposta é, então, submetida à homologação da Câmara
de Comércio Exterior (Camex). Órgão político, composto pelos ministros de sete
pastas diferentes1, é sua a palavra final sobre a medida que deve ser
aplicada sobre a importação de produtos, comercializados por empresas que adotam
práticas comerciais que podem ameaçar ou, mais grave, provocar um dano à
indústria brasileira.
É, pois, um ato
administrativo, por excelência. Afinal, mediante um processo, conduzido por um
órgão federal, é proposta a aplicação de uma penalidade, aqui compreendida em
seu sentido amplo, como uma restrição a uma prática comercial, tida como
prejudicial a um interesse nacional, a indústria brasileira. Respeitado esse
procedimento, o Estado brasileiro passa a ter direito, pleno, de restringir o
livre comércio com outro país, mediante a oneração da mercadoria, exportada
mediante dumping.
Um ato
administrativo complexo, sim. Primeiro, passa por toda uma investigação, sujeita
a critérios técnicos e especializados. Depois, aperfeiçoa-se, mediante a
homologação por um órgão político, que avalia, por fim, a conveniência e a
oportunidade da sua aplicação.
O parágrafo único
do artigo 1º da Lei nº 9.019/95 estabelece que "os direitos antidumping e
os direitos compensatórios serão cobrados independentemente de quaisquer
obrigações de natureza tributária relativas à importação dos produtos afetados".
Se a sua cobrança independe dos tributos, se não podem ser tratados da mesma
forma, é porque, por óbvio, eles não possuem a mesma natureza.
Mas nada é óbvio
pela burocracia brasileira. O § 1º do artigo 7º da Lei nº 9.019/952
delega à Secretaria da Receita Federal do Brasil a cobrança dos direitos
antidumping. Pouco a pouco, o procedimento de cobrança criou sérias
dúvidas aos contribuintes. O direito antidumping é cobrado na introdução
da mercadoria no comércio do país, idêntico momento em que ocorre o fato gerador
do Imposto de Importação, quando devido. E, em nome da desburocratização dos
serviços públicos, ou de qualquer outro princípio de economia administrativa, o
direito antidumping acaba sendo cobrado mediante um único auto de
infração, no qual é lançado, também, o Imposto de Importação. Aliás, esse
procedimento foi consolidado pela Lei nº 10.833/03, que incluiu o § 5º ao artigo
7º da Lei nº 9.019/95:
§ 5º - A exigência
de ofício de direitos antidumping ou de direitos compensatórios e
decorrentes acréscimos moratórios e penalidades será formalizada em auto de
infração lavrado por Auditor-Fiscal da Receita Federal, observado o disposto no
Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, e o prazo de 5 (cinco) anos contados
da data de registro da declaração de importação.
Ora, um auto de
infração é um lançamento de ofício, lavrado por uma autoridade competente, para
constituir um crédito tributário, em desfavor de um contribuinte, conforme o
artigo 142 do Código Tributário Nacional3. Um lançamento só pode ser
praticado, de ofício, quando o auditor da Secretaria da Receita Federal
verifica, pois, a ocorrência de um fato gerador de tributo.
Então, se é
cobrado, mediante lançamento, o direito antidumping seria um tributo. E
para revesti-lo ainda mais dessa natureza, a Lei nº 10.833/03 atribui-lhe o
predicado de Dívida Ativa, sendo passível de execução fiscal pela Procuradoria
da Fazenda Nacional, acrescentando o § 6º ao artigo 7º da Lei nº 9.019/95:
§ 6º - Verificado o
inadimplemento da obrigação, a Secretaria da Receita Federal encaminhará o
débito à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, para inscrição em Dívida Ativa
da União e respectiva cobrança, observado o prazo de prescrição de 5 (cinco)
anos.
Se a Lei nº
10.833/03 teve o objetivo de atribuir aos direitos antidumping a natureza
de tributo, pois bem, o Brasil corre o sério risco de desrespeitar as regras do
artigo 6º do Acordo Geral de Comércio e Tarifasde 1994, razão por que a
questão não se afigura tão simples, como de primeiro plano.
Enquanto tributo, o
direito antidumping se submeteria a todo um conjunto de princípios e
normas que acabariam, por fim, impedindo a sua finalidade precípua, a defesa
comercial da indústria doméstica. Vejamos, por exemplo, as limitações ao poder
de tributar, estabelecidas pelos incisos I, III e IV do artigo 150 da
Constituição Federal:
Art. 150 - Sem
prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou
aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
III - cobrar
tributos:
b) no mesmo
exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou
aumentou;
IV - utilizar
tributo com efeito de confisco;
O princípio da
legalidade, insculpido no inciso I, rejeita, por completo, o procedimento de
aplicação do direito antidumping por um órgão administrativo e um órgão
político, já que essa atribuição é reservada à Lei, aqui compreendida em sua
acepção estrita como o resultado de um processo legislativo.
O inciso II cuida
do princípio da anterioridade. Nenhum tributo pode ser cobrado no mesmo
exercício financeiro em que foi publicada a Lei que o criou ou majorou. Assim,
nenhum direito antidumping poderia ser cobrado, imediatamente após a
publicação da Resolução Camex. Tamanha postergação da cobrança poderia tornar
sem efeito a aplicação do direito antidumping, dada a celeridade com que
as relações comerciais se modificam. A prática de dumping pode não
perdurar até o próximo exercício financeiro, em que passaria a viger o direito
antidumping.
Finalmente, quanto
ao inciso IV, há situações em que a margem de dumping supera cinquenta
por cento, até cem, do preço ex works da mercadoria. Se, para sanar o
dano, for necessário aplicar um direito antidumping ad valorem nessas
proporções, a medida, certamente, estaria sujeita à impugnação pela sua natureza
confiscatória.
Questiona-se, pois,
é tributária a natureza jurídica dos direitos antidumping diante das
modificações introduzidas pela Lei nº 10.833/03 à Lei nº 9.019/95?
O Superior Tribunal
de Justiça, órgão responsável pela normalização da interpretação da Lei Federal,
não possui jurisprudência sobre o tema. A pesquisa ao sistema de jurisprudência
dessa Corte, utilizando a expressão "dumping", resultou apenas em 18
acórdãos. Desses 18, apenas 11 cuidam da aplicação de direitos
antidumping. Dois acórdãos tratam de filigranas processuais, em que se
decidiu pela inadequação do processo eleito pela parte para discutir seu
direito4. Outro, discute a aplicação da lei no tempo, qual deve ser
obedecida, quando modificada no curso da aplicação do direito
antidumping5. Dois acórdãos cuidam do cumprimento dos
requisitos para aplicação do direito antidumping, isto é, a verificação
do dumping, a prova do dano e a sua relação causal durante a
investigação, conduzida pelo Decom6. Finalmente, seis acórdãos
discutem a competência do Decom para a investigação e aplicação do direito
antidumping, concluindo que compete ao Poder Judiciário examinar apenas a
obediência dos procedimentos estabelecidos pela Lei nº 9.019/957.
As inovações da Lei
nº 10.833/03 devem ser interpretadas à luz de um princípio maior, previsto no
artigo 98 do Código Tributário Nacional: "Os tratados e as convenções
internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão
observados pela que lhes sobrevenha".
A legislação
tributária brasileira deve observar os tratados já existentes. Como o Brasil é
signatário do Acordo Geral de Comércio e Tarifas, desde 1994, a Lei nº 10.833/03
não pode atribuir ao direito antidumping um procedimento ou, mais grave,
um tratamento jurídico diferente do que foi estabelecido pelo artigo 6º.
Atribuir ao direito antidumping natureza tributária restringe-lhe,
sobremaneira, a sua aplicação e desvirtua, por completo, a sua aplicação.
O direito
antidumping não satisfaz, igualmente, a definição do artigo 3º do Código
Tributário Nacional: "Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda
ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
vinculada".
O direito
antidumping constitui-se em uma prestação pecuniária, em moeda,
obrigatória e estabelecida mediante processo administrativo. Disso não há o que
se discordar. Ele, todavia, não satisfaz dois requisitos da definição de
tributo: sanção de ato ilícito e a sua instituição em lei.
Como dito
anteriormente, o direito antidumping constitui, sim, uma sanção de um ato
ilícito. Embora as práticas comerciais se desenvolvam sobre o dogma da livre
concorrência, algumas são prejudiciais à indústria e comércio, como o
dumping. Se uma empresa dispõe de vantagens comparativas, que lhe
assegurem condições de concorrência superiores à indústria de outras economias,
este fato, por si só, não lhe dá direito de prejudicá-las. Ao revés, nessa
hipótese, o direito à livre concorrência pode ser impedido por uma sanção,
respectiva e proporcional ao dano provocado à indústria prejudicada pelo
dumping.
Ademais, e mais
relevante, o direito antidumping é um ato administrativo complexo,
proposto pelo Decom e aplicado pela Camex. É uma medida jurídico-política,
aplicada diante de uma investigação técnica e especializada. Ele não é
instituído por Lei, resultante de um processo legislativo, de modo que não
satisfaz a definição do Código Tributário Nacional.
Por fim, o artigo
10, caput, da Lei nº 9.019/95 estabelece que:
Art. 10 - Para
efeito de execução orçamentária, as receitas oriundas da cobrança dos direitos
antidumping e dos direitos compensatórios, classificadas como receitas
originárias, serão enquadradas na categoria de entradas compensatórias previstas
no parágrafo único do art. 3º da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964.
E, por sua vez,
estabelecem o artigo 3º e o § 1º do artigo 11 da Lei nº 4.320/64:
Art. 3º - A Lei de
Orçamentos compreenderá tôdas as receitas, inclusive as de operações de crédito
autorizadas em lei.
Parágrafo único -
Não se consideram para os fins deste artigo as operações de crédito por
antecipação da receita, as emissões de papel-moeda e outras entradas
compensatórias, no ativo e passivo financeiros.
Art. 11 - A receita
classificar-se-á nas seguintes categorias econômicas: Receitas Correntes e
Receitas de Capital.
§ 1º - São Receitas
Correntes as receitas tributária, de contribuições, patrimonial, agropecuária,
industrial, de serviços e outras e, ainda, as provenientes de recursos
financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando
destinadas a atender despesas classificáveis em Despesas Correntes.
O orçamento da
União inclui todas as receitas, assim classificadas em receitas correntes e de
capital. E, conforme o parágrafo primeiro do artigo 11, as receitas tributárias
integram as primeiras. Excluídas do orçamento da União, estão as ressalvas do
parágrafo único do artigo 3º, dentre elas, as entradas compensatórias.
Ora, se o artigo 10
da Lei nº 9.019/95 classifica a receita dos direitos antidumping como
entrada compensatória, ela sequer integra o orçamento da União, quanto mais as
receitas tributárias, que integram as receitas correntes.
As inovações da Lei
nº 10.833/03 devem, pois, ser interpretadas de forma estrita. Elas se limitam
aos procedimentos de constituição da dívida, decorrente da cobrança dos direitos
aduaneiros. Delega competências, disciplina procedimentos de defesa e estabelece
prazos para a sua constituição e cobrança.
Embora engajada
pela desburocratização dos procedimentos que envolvem as operações de comércio
exterior, a Lei nº 10.833/03 não pode desvirtuar a natureza dos direitos
antidumping, ato administrativo, por excelência, sob pena de tornar sem
efeito a sua aplicação e, mais grave, expor o Brasil à violação das regras do
Acordo Geral de Comércio e Tarifas de 1994.
NOTAS
1A Camex
é composta pelos ministros do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior;
chefe da Casa Civil da Presidência da República; das Relações Exteriores; da
Fazenda; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; do Planejamento, Orçamento e
Gestão; e do Desenvolvimento Agrário.
2Art.
7º, § 1º, da Lei nº 9.019/95: "Será competente para a cobrança dos direitos
antidumping e compensatórios, provisórios ou definitivos, quando se
tratar de valor em dinheiro, bem como, se for o caso, para sua restituição, a
SRF do Ministério da Fazenda".
3"Art.
142 - Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito
tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo
tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente,
determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido,
identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade
cabível."
4MS
10.876/DF, julgado em 28/03/2007, e MS 5.628/DF, julgado em 06/11/1998.
5MS
4.516/DF, julgado em 13/11/1996.
6MS
14.641/DF, julgado em 22/09/2010, e MS 13.413/DF, julgado em 24/09/2008.
7REsp
1048470/PR, julgado em 23/03/2010; REsp 1105993/PR, julgado em 04/02/2010; MS
14.670/DF, julgado em 09/12/2009; MS 14.691/DF, julgado em 09/12/2009; MS
13.474/DF, julgado em 14/10/2009; REsp 855.881/RS, julgado em 15/03/2007.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº
4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para
elaboração e contrôle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos
Municípios e do Distrito Federal. Sítio oficial da Presidência da República.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4320.htm>.
Acesso em: 13 maio 2011.
BRASIL. Lei nº
5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e
institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e
Municípios. Sítio oficial da Presidência da República. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm>. Acesso em: 13 maio
2011.
BRASIL.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Sítio oficial da
Presidência da República. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
Acesso em: 13 maio 2011.
BRASIL. Lei nº
9.019, de 30 de março de 1995. Dispõe sobre a aplicação dos direitos previstos
no Acordo Antidumping e no Acordo de Subsídios e Direitos Compensatórios,
e dá outras providências. Sítio oficial da Presidência da República. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9019.htm>. Acesso em: 13
maio 2011.
Sítio oficial do
World Trade Organization. Disponível em: <http://www.wto.org>. Acesso em:
13 maio 2011.
Sítio oficial do
Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>.
Acesso em: 13 maio 2011.
Fonte: Aduaneiras (ANTONIO CORRÊA JUNIOR)
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