segunda-feira, 30 de maio de 2011

Apreensões de mercadorias pela Receita Federal (parte III)

Na primeira e na segunda parte deste trabalho, tratamos da apreensão de bens pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, como exercício do "poder de polícia", bem como abordamos algumas das limitações ao exercício desse poder (poder-dever). Hoje fecharemos a abordagem quanto a essas limitações, bem como apresentaremos algumas conclusões, encerrando, assim, a série de três artigos sobre o tema da apreensão de bens pela Receita Federal.

Como visto, a finalidade do ato de apreensão de bens pela Receita Federal consiste, genericamente, em evitar a propagação na ordem jurídica dos efeitos de um provável ilícito.

Como órgão da Administração Pública, a Receita Federal não pode agir imprecisamente, segundo a veleidade ou o capricho do agente público. Ela deve agir sempre almejando um objetivo prefixado na sua competência própria. A relação do ente administrativo com os particulares é uma relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente. Trata-se de uma espécie de relação em que o dever e a finalidade são predominantes.

Quando o agente público, aqui considerado um agente da Secretaria da Receita Federal, se vale da competência que lhe é atribuída para alcançar uma finalidade diversa daquela a que se destina tal competência, pratica o que se chama de desvio de poder ou desvio de finalidade.

Um exemplo comum de desvio de poder praticado pela Secretaria da Receita Federal no exercício de seu poder de polícia é a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para o pagamento de tributos. Normalmente, isso ocorre quando as mercadorias estão em trânsito e a autoridade aduaneira ou fiscal vislumbra o descumprimento de uma obrigação tributária. Ato contínuo a autoridade apreende as mercadorias. Desde a edição da Súmula 323 pelo Supremo Tribunal Federal, em 1963, os tribunais vêm reconhecendo a invalidade dessa prática.

Dispõe a Súmula 323 do STF que "é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos".

Por outro lado, o STF considera válida a apreensão e retenção de mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal idônea (ADI nº 395, DJE 16/08/07). Mesmo assim, considera-se ilegal, por consistir em sanção política, a apreensão de mercadoria ainda que desacompanhada de nota fiscal se a Administração tributária não efetiva o ato administrativo de lançamento da penalidade e cobrança do tributo, nos termos da Súmula 323/STF (STJ, REsp 1104228, DJE 14/12/09).

Outro aspecto relevante quanto aos limites do exercício do poder de polícia relacionado à apreensão de bens pelos agentes da Receita Federal é o da forma do ato de apreensão.
Os vícios de forma dos atos administrativos podem ser agrupados em duas categorias: 1ª. invalidade; 2ª. irregularidade.

No plano da validade, o primeiro requisito do ato de apreensão é a ocorrência de manifestação formal, documental. Considera-se nulo ab initio o ato administrativo de apreensão de bens não amparado em auto formal de apreensão. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, é condição de validade do ato tributário que importe em intromissão no direito de propriedade do sujeito passivo de obrigação tributária sua materialização formal em auto de infração, instrumento adequado à tipificação da conduta infracional que enseja a abertura de processo para a aplicação das sanções cabíveis, legitimada pelo exercício do contraditório em procedimento em que se assegure ampla defesa (STJ, REsp 1104228, DJE 14/12/09). Há autores que consideram essa falha tão grave que o ato seria "inexistente".

O grande problema prático para o particular submetido à situação de ter uma mercadoria apreendida, sem que tenha sido lavrado um auto de apreensão (ou ato que o valha), será comprovar que houve a apreensão. Por isso, deve ser sempre exigido da autoridade apreensora que seja emitido um auto de infração ou apreensão discriminando detalhadamente todos os bens apreendidos.
Um segundo aspecto referente à validade diz respeito à observância pela autoridade administrativa do devido procedimento legal para a apreensão dos bens. Se não for observado o devido procedimento legal, o ato de apreensão será nulo de pleno direito.

Nesse sentido, dentre diversos outros enfoques ilustrativos que poderiam ser apresentados, observe-se que a apreensão de mercadorias pela Receita Federal somente pode ser executada por Auditores Fiscais da Receita Federal (AFRFs) e, via de regra, instaurada mediante ordem específica denominada Mandado de Procedimento Fiscal (MPF). O Mandado de Procedimento Fiscal não será exigido nas hipóteses de procedimento fiscal: I - realizado no curso do despacho aduaneiro; II - interno, de revisão aduaneira; III - de vigilância e repressão ao contrabando e descaminho realizado em operação ostensiva; IV - de que trata a IN SRF nº 579/05, alterada pela IN RFB nº 958, de 15 de julho de 2009 ("malha fina").

Um terceiro requisito formal é a motivação, ou seja, a fundamentação expressa, por meio da exposição das razões de fato e de direito que justificam o ato. Essa fundamentação deve conter não apenas os motivos que levaram à apreensão, mas também a finalidade buscada com aquele ato. A autoridade da Receita Federal que apreende um bem deve demonstrar que sua escolha foi a mais correta, a que melhor pode atingir a finalidade de preservar a higidez da ordem jurídica.

É comum que as autoridades fiscais e aduaneiras, no auto de infração, restrinjam-se a justificar a apreensão de bens afirmando que os fatos se subsumem ao disposto no "artigo tal da lei tal". Uma apreensão assim justificada padece de vício de motivação, pois não basta a invocação à existência em abstrato de uma regra de direito positivo. A motivação deve conter as razões de fato e de direito que levaram ao ato e a finalidade que o justifica. Eventual auto de apreensão que se limite a afirmar que os bens foram apreendidos "conforme o artigo tal da lei tal" é nulo de pleno direito e assim há de ser reconhecido na esfera judicial.

Passemos, então, a tratar das irregularidades dos atos administrativos. Atos administrativos irregulares são aqueles que padecem de vícios materiais considerados irrelevantes, ou em que há uma formalização que não segue a padronização interna do órgão administrativo que profere o ato. A caracterização de um ato como meramente irregular, no entanto, deve ser vista com extrema cautela, em virtude do princípio da legalidade e da necessidade de observância da forma para que o ato administrativo seja válido. Se houver efeitos sobre a publicidade do ato, prazos de impugnação ou qualquer aspecto que interfira em garantias e direitos fundamentais do particular (pessoa física ou jurídica) atingido pelo ato, não se tratará de mera irregularidade, mas de nulidade.

No campo da apreensão de bens, um exemplo de mera irregularidade seria um auto de infração e apreensão em que o Auditor Fiscal da Receita Federal cometesse um equívoco na redação da razão social da autuada, que consistisse em "ABC Importação e Exportação Ltda." e fosse chamada no auto de infração de "ABC Importadora e Exportadora Ltda."; a identificação do CNPJ, porém, seria correta, sendo inequívoca a identificação da sociedade autuada. Haveria nesse caso, erro material que consiste em mera irregularidade e não caracteriza invalidade.

Há, por certo, diversos outros aspectos jurídicos relevantes no tema da apreensão de bens pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. O propósito do presente texto, no entanto, é introdutório e principiológico, procurando informar o leitor sobre pontos que entendemos ser algumas das diretrizes jurídicas sobre a matéria.

Em síntese, as principais considerações expostas em nossa série de três artigos a respeito da apreensão de bens pela Receita Federal são as seguintes:

1. A apreensão de bens pela Secretaria da Receita Federal do Brasil é uma atividade com grande importância social e econômica, que vem se intensificando ao longo dos anos.

2. As competências e as atividades da Secretaria da Receita Federal do Brasil para proceder à apreensão de bens constituem exercício do chamado poder de polícia (limitações da autonomia privada).

3. A apreensão de bens é (deve ser) medida preventiva ou acautelatória; não é (deve ser) sanção (pena, punição).

4. Sob o ponto de vista da competência ou sujeito, para que o ato de apreensão de bens pela RFB seja válido: 1. esteja presente a capacidade da pessoa jurídica que o praticou; 2. o ato esteja dentre as atribuições do órgão que o praticou; 3. seja competente o agente que o emanou; 4. não exista óbice à atuação do agente no momento em que o ato foi praticado.

5. As atividades de apreensão de bens, ainda que, a priori, sejam medidas preventivas e não sanções, caracterizam uma restrição de direito do titular dos bens apreendidos. Por consequência, sujeitam-se ao regime da legalidade estrita. Ou seja, não pode haver apreensão de bens pela Secretaria da Receita Federal se não existir lei ordinária atribuindo esse poder (competência) e essa medida para uma dada situação de fato.

6. No que diz respeito à forma, o ato administrativo de apreensão de bens deve observar, pelo menos, os seguintes requisitos: a) deve ser documentado em um auto formal, em que uma das vias deve ser entregue para o autuado; b) deve observar o devido procedimento legal; c) deve conter motivação, ou seja, fundamentação expressa, por meio da exposição das razões de fato e de direito e a finalidade que justificam o ato.

7. A finalidade do ato de apreensão de bens pela Receita Federal consiste, genericamente, em evitar a propagação na ordem jurídica dos efeitos de um provável ilícito. Assim, quando um agente da Secretaria da Receita Federal se vale da competência que lhe é atribuída para alcançar uma finalidade diversa daquela a que se destina tal competência, pratica o que se chama de desvio de poder ou desvio de finalidade, o que gera a nulidade do ato.

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Freitas Inteligência Aduaneira